“No espaço a solidão é tão normal…” (O Astronauta de Mármore / Starman)

Foi numa noite fria de São Paulo, enquanto bebia uma caipiroska gelada acompanhado de uma amiga, em um bar pequenino e meio escondido da Rua Augusta, que eu, em um espasmo de filosofia existencial de botequim, disse que nós, os humanos, vivíamos no que chamei de “Carrossel do Fim do Mundo”.

O que eu queria dizer, com aquela vibe meio grogue e a voz rouca — ambos efeitos do álcool –, é que oscilávamos perigosamente entre a manutenção e a destruição completa de toda a raça humana e de todas as outras espécies que coexistem conosco no planetinha azul.

As subidas e descidas são aproximações da morte, enquanto o ponto mais próximo do centro horizontal (ou seja, longe dos extremos) é o estágio mais estabilizado desse jogo de vida. E o giro ‘eterno’ do carrossel em torno de si mesmo nada mais é que a representação do constante movimento gravitacional dos corpos celestes não apenas em nosso sistema, mas em toda a galáxia e dela mesma ao redor do buraco negro lá do centro — o chamado movimento helicoidal.

A metáfora do carrossel torna-se ainda melhor porque, enquanto giramos,sem fim e sem finalidade (adoro fazer referências aleatórias e sem contexto ao trabalho do filósofo Jean Baudrillard), subimos e descemos, em maior ou menor proximidade do autoextermínio, enquanto tudo parece parte da brincadeira.

Um dia, estejamos nós, eu e você, aqui ou não, o carrossel vai parar. (Foto: Chris Luckhardt)

 

Quando falo em “aproximações da morte”, não me refiro a qualquer acaso que pode levar qualquer um de nós ao óbito. Mas às nossas decisões enquanto espécie; atos isolados ou coletivos que têm potencial sobre todos nós: guerras, genocídios, destruição do ecossistema, exploração de formas instáveis e altamente poluentes de geração de energia, instabilidades financeiras e sociais causadas pelo deus mercado, e por aí vai. Parece, admito, papo furado messiânico-apocalíptico, mas alguém já se perguntou, de forma pragmática, o quanto impactamos, de forma preocupante, a gota de água que nos sustenta em meio ao aparente vazio do Universo?

Carl Sagan, um dos maiores cientistas e divulgadores da ciência que o mundo já viu, já dizia: “O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos. (…)”

Assim, se há chances de algum meteoro errante chocar-se conosco e destruir tudo o que conhecemos e dê início a um dramático reordenamento da vida na Terra — caso alguma forma de vida dentro dela sobreviva –, também existe a inequívoca e aparentemente inevitável possibilidade que este meteoro seja, na verdade, uma alegoria de um glorioso tiro no próprio pé.

Essa conversa aleatória com minha amiga foi em algum ponto perdido de 2014. Agora, em 2016, os cientistas apresentaram o que entendem como uma proposta para resolver um dos maiores paradoxos propostos pela ciência: o Paradoxo de Fermi. Ele questiona: se existem tantas galáxias pelo Universo, e todas elas com centenas de bilhões de sóis, e muitos dessas estrelas com dezenas de milhares de planetas na chamada “zona habitável”, e estes planetas com algumas das condições ideais para a formação da vida, porque diabos ainda não encontramos sequer seres unicelulares por aí?

O já citado Sagan também dizia: “Às vezes acredito que há vida em outros planetas às vezes eu acredito que não. Em qualquer dos casos, a conclusão é assombrosa.” É assombrosa porque, caso não haja formas de vida por aí, todo o Universo seria, nas palavras do próprio Sagan,“um grande desperdício de espaço”. E mais ainda: se não há mais nada nem ninguém lá fora, por que apenas aqui? O que se fez tão especial para que fôssemos tão ‘únicos’?

“Não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.” (Carl Sagan)

 

Eis o ponto crucial do paradoxo. Mas os cientistas, incansáveis, apresentaram outra forma de pensar: a Hipótese do Gargalo de Gaia. Em linhas gerais, ela sugere uma espécie de solução teórica ao Paradoxo de Fermi. Não é que nós sejamos únicos e especiais, criações de um deus maravilhoso, sábio e inescrutável; ou ainda que a vida, em suas mais variadas ou imaginadas formas, seja raríssima e até impossível; o que seria raro é que as condições planetárias que permitam a continuidade da vida em formação sejam tão prolongadas a ponto dela desenvolver-se até chegar em estado de vida inteligente, por exemplo. A hipótese defende que a vida pode e deve existir por aí, mas possivelmente será ou já foi morta por qualquer fatalidade cósmica: instabilidade de clima, efeitos-estufa descontrolados, meteoros caçadores de dinossauros…

Li a notícia sobre a Hipótese do Gargalo de Gaia em uma reportagem em inglês, já aguardando que os sites de notícias científicas nacionais republicassem por aqui na língua nativa (o que levou pelo menos uma semana para acontecer).

Em ambas as leituras, fiquei empolgado. Em primeiro lugar, devo sedimentar de uma vez por todas minha certeza de que os cientistas sabem bolar nomes curiosos e marcantes para questões de física teórica e assuntos relacionados à astronomia; segundo, porque a hipótese lembrou, indiretamente, a questão que propus sobre o “Carrossel do Fim do Mundo”. Mas por outro viés: não depende necessariamente de nós, ou de nossas vontades ou ações, subir ou descer no giro do carrossel; esses ciclos e zigue-zagues entre vida e riscos de morte de todos os seres vivos são inevitáveis porque, a qualquer tempo, tudo vir à ruína.

Somos uma gota de orvalho levitando no assombroso vazio. Um oásis de luz na imensa escuridão e no total desconhecido. Não temos uma outra base, outro porto seguro em que possamos descansar, ancorar e manter o status quo de espécie sobrevivente em nenhum outro lugar, até então, que não seja a Terra. Ela é o ponto-chave, o elemento crucial de nossa existência, a base de tudo. O marco zero. A única morada conhecida (por nós mesmos) para milhões de formas de vida além de nós.

Na obra-prima Interestelar (2014), de Christopher Nolan, quando os cientistas-desbravadores partem para a missão rumo às cercanias de Júpiter, um deles, Romilly (David Gyasi), tomando consciência do sentimento de “deriva” espacial, bate na parede de alumínio de um dos aposentos da espaço-nave e conclui: “Só uns milímetros de alumínio. E mais nada lá fora. Só milhões de quilômetros que nos matariam em segundos”. De modo que Cooper (Matthew McConaughey) responde: “Você sabia que os melhores iatistas do mundo não sabem nadar? Não sabem. E se caírem, já era. Somos exploradores, Rom. E esse é o nosso barco.”

“Não é que nós sejamos únicos e especiais, criações de um deus maravilhoso, sábio e inescrutável; ou ainda que a vida, em suas mais variadas ou imaginadas formas, seja raríssima e até impossível; o que seria raro é que as condições planetárias que permitam a continuidade da vida em formação sejam tão prolongadas a ponto dela desenvolver-se até chegar em estado de vida inteligente, por exemplo.”

E, tal como um barco, podemos chegar à deriva neste oceano escuro com uma onda mais violenta causada por uma tempestade incontrolável. Ou porque, brigando entre nós mesmos, colocamos a embarcação sob risco de naufrágio. Ou ainda porque mudamos tanto nosso clima que a tempestade não tenha sido assim tão aleatória, mas consequência de nossos atos. Vá saber. Seja como for, toda essa questão me fez pensar nos mais variados gargalos que seriam capazes de nos destruir.

É exatamente isso o que quero saber. Toda essa deliberação pseudo-filosófica-existencial é um convite público a todos os autores, aspirantes a autores e demais entusiastas de literatura de ficção científica e de assuntos relacionados à astronomia, física teórica e especuladores do apocalipse para participarem da seleção para a primeira antologia de ficção científica da Lendari, intitulada: O último Gargalo de Gaia: distopias, steampunk e dias finais.

 
Capa incrível feita pela Marina Ávila.

 

“Não depende necessariamente de nós, ou de nossas vontades ou ações, subir ou descer no giro do carrossel; esses ciclos e zigue-zagues entre vida e riscos de morte de todos os seres vivos são inevitáveis porque, a qualquer tempo, tudo vir à ruína.”

Quero ver suas próprias e curiosas versões sobre as etapas que culminarão com nosso fim. A antologia será publicada, inicialmente, apenas em sua versão digital (e-book). Uma eventual versão impressa não está descartada, mas deixemos isso para o fim do ano. O regulamento de participação será publicado no site da editora no dia 15 de fevereiro — logo após o Carnaval. Vamos receber originais até o dia 31 de maio de 2016, prazo que pode ou não se prorrogado.

Em que momento, nosso relógio do fim do mundo vai apontar para meia-noite? Não temos como ter certeza, mas, ao menos, podemos nos divertir especulando — em bares noturnos da Augusta, entre uma ou outra dose de caipiroska, ou navegando em uma obra literária concebida inteiramente com esse fim.

E aí, topa participar de uma missão possivelmente sem volta?

“Somos exploradores, Rom. E esse é o nosso barco.”