Tive a grande sorte, quando estava no ensino médio, de ter sido obrigado a ler a obra “Dois Irmãos”, do escritor amazonense Milton Hatoum. Gostei tanto que comprei dois, porque o primeiro um colega queixou.

“Dois Irmãos” conta a história dos gêmeos de origem libanesa Omar e Yaqub. Omar é um porra-louca desde pequeno, impulsivo, sanguíneo, enquanto Yaqub é mais tímido e menos ousado. Por conta de um rabo de saia surge a primeira rusga entre os dois, ainda na infância. A briga foi tão séria que o pai deles, o seu Halim, decide mandar os dois para morar um tempo no Líbano. Mas a mãe, Zana, convence Halim a mandar apenas Yaqub, deixando Omar, o sem juízo, próximo a ela. Mas quando Yaqub volta a Manaus, anos depois, percebe-se que a distância física, no lugar de apaziguar a briga, serviu apenas para afastá-los definitivamente.

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Mais de uma década após aquela aula de literatura, revisitei a obra, agora adaptada pelos irmãos paulistas Fábio Moon e Gabriel Bá. Os caras são fodas: tem 3 Eisner (o “Oscar” dos quadrinhos), tendo sido os primeiros brasileiros a ganhar o prêmio. Também já levaram para casa um Jabuti, pela adaptação de O Alienista, de Machado de Assis. Detalhe: também são gêmeos.

Os dois fizeram a obra em cooperação com o autor Milton Hatoum, que discutiu com eles a narrativa, o visual dos personagens e deu orientações sobre uma das principais personagens da obra: Manaus. Os caras chegaram a vir pra cá, para sentir a cidade. Eles contam que chegaram a usar até a página “Manaus de Antigamente” no Facebook para encontrar referências para o desenho.

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Gabriel Moon falou sobre a experiência de desenhar nossa cidade na sua coluna no blog da editora e é bem interessante. Outros textos dele sobre o processo de criação da HQ podem ser lidos aqui, aqui, aqui, e aqui. Todos valem a leitura.

Por conta do currículo dos caras e, claro, por ser uma obra tão importante da literatura nacional, a adaptação em quadrinhos criou bastante expectativa e o lançamento foi grande. Aconteceu primeiro na França (país onde os quadrinhos são coisa séria), no Salão do Livro de Paris. Logo depois eles lançaram em Manaus, no Largo São Sebastião (segundo eles, não tinha como ser mais adequado), e aí Brasil afora. A graphic novel deve chegar também nos EUA a partir de outubro.

Voltando à obra: os caras conseguiram captar a atmosfera da cidade entre as décadas de 20 e 70, me fazendo sentir nostalgia de uma época que nunca vivi. A sensação que essa história me passa, desde que li o livro, é de algo que aconteceu na família de um conhecido, a madrinha da minha mãe, a prima da minha avó… A história da Domingas, por exemplo, do bichinho do mato que vem do interior e é criado por uma família na capital, cuidando das crianças, às vezes pouco mais novas que ela, eu já vi acontecer na casa de familiares. O quintal da casa do Halim me lembra o quintal da casa do meu avô, desde a vegetação presente, em meio a qual tomávamos banho de bacia (aquela de metal), à casinha construída lá, que servia de depósito. E a sensação de familiaridade é ampliada milhões de vezes pelo simples fato de que eu reconheço cada paisagem retratada no traço estilizado, cada referência usada.

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Aliás, o visual da HQ chama bastante atenção. É toda em preto e branco, e o jogo de luz e sombras é incrível, muito bem executado. Mesmo sem cores você percebe quando uma cena é no início da manhã ou no final do dia, se está fazendo um solzão radioativo ou se é um dia chuvoso. Mesmo com um traço solto, aparentemente sem muito detalhe, me peguei descobrindo novos elementos na segunda vez que li. Gosto muito da maneira como eles diferenciam os gêmeos desde que são bebês, com um reflexo no cabelo de um, que não há no outro. Aliás, todos os personagens tem traços muito característicos, sendo impossível confundir qualquer um deles, pois até os personagens secundários tem muita personalidade no desenho.

Dá uma olhada neste vídeo em que o Gabriel Bá finaliza um desenho:

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Quanto ao texto, tem precisão milimétrica. Não há uma palavra ou vírgula sobrando ou fora do lugar. Todos os diálogos e narrações dizem muito mais do que o que está escrito e conseguem resumir personalidades, relações e sentimentos perfeitamente, com apenas um balão de fala. Claro, para isso os autores contam com o texto maravilhoso do Hatoum, mas que foi muito bem selecionado e encaixado pelos irmãos.

O roteiro (como o livro) trata de assuntos bem pesados, como vingança, orgulho, inveja, rebeldia, angústia, saudades… vistos pelos olhos de um observador, que faz parte da história mas não é o protagonista. Ele assiste a família passando por todos esses dramas enquanto ele mesmo vai crescendo. E com ele, cresce Manaus. Muito bacana ver como o desenvolvimento da cidade vai afetando a vida de todos.

Achei a adaptação incrível, recomendo não apenas para quem é fã do livro, ou de quadrinhos em geral, mas para todos que gostam de uma boa história. Acho até que deveria ser adotada nas escolas, dando a chance de jovens (criança não rola, porque tem umas ceninhas de sexo aqui e acolá) conhecerem, e se apaixonarem, por essa obra tão importante da nossa literatura.

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PS: “Dois Irmãos” na TV

Cauã Reymond vai interpretar Omar e Yaqub na minissérie da Globo inspirada na obra. Do que eu vi do elenco até agora, achei bem escalado, principalmente a Eliane Giardini como Zana, porque eu JURO que imaginei essa atriz quando estava lendo a HQ, antes de saber da escalação. A série iria ao ar em agosto, mas parece ter sido adiada. O google tem mais informações.