Roncos de motores enfurecidos anunciam a morte na Floresta. São as motosserras em ação, derrubando árvores sem a menor preocupação com sua idade e sua função na Natureza.

Duas motosserras param. Mais uma árvore ancestral cai no chão. Menos uma vida iluminando a humanidade. Os homens comemoram a derrubada.

De repente, um barulho em meio à vegetação. Os homens observam algo brilhante se aproximando.

─ O que é isso? ─ Um dos homens faz o sinal da cruz.

─ Parece coisa de espírito…

Os homens ficam apreensivos.

De trás das folhagens de árvores menores sai um belo veado, todo iluminado.

─ CRENDEUSPAI! ─ Um dos homens grita assustado. Outras motosserras param e o grupo, que observava o veado, se torna maior. Alguns homens se aproximam, admirados com o animal brilhante à sua frente; outros fogem, desesperados, com medo do “espírito”.

Quando alguns homens começam a se aproximar do animal, seu brilho fica mais intenso e ele parece mudar de forma, se tornando maior. Os homens se afastam rapidamente.

Em segundos, o animal vai se transformando em um ser fantástico. Era um homem, de estatura maior que o normal e com chifres de veado em sua cabeça. Não parecia muito jovem, mas também não era um velho. Era forte e tinha um olhar ameaçador, que deixou os homens congelados de pavor.

O ser olhava para os homens com desprezo. Então, um deles consegue vencer o medo e grita.

─ É ANHANGÁ! VAMOS TODOS MORRER…

Dois homens desmaiam. Anhangá olha para a cena, árvores caídas, amassando, com seus longos troncos, tudo que havia no caminho; homens, ao longe, com suas motosserras ainda em ação, indiferentes à presença do Espírito que era o maior pesadelo da região.

Anhangá, com expressão de pura desaprovação, impaciência e sem a menor piedade, ergue sua mão direita e as motosserras param todas de uma só vez. Os trabalhadores ficam confusos, se olhando, tentando encontrar uma explicação para as máquinas pararem de funcionar; então eles veem o grupo paralisado, perto do grande ser da Floresta. Os homens tentam fugir, mas, com uma leve movimentação com as mãos, Anhangá arranca deles toda a energia vital; suas carcaças secas caem no chão, como se estivessem mortos há séculos.

O pânico toma conta do grupo que observa Anhangá. Ele olha para os homens e levita até eles. Quando está perto do grupo, Anhangá se abaixa e olha nos olhos de um dos homens.

─ Breu, breu, breu… É só o que vejo dentro de vocês. Muita escuridão, muito vazio… ─ Anhangá diz, se afasta um pouco e olha para todo o grupo. ─ Me digam… Por que julgam que suas existências vazias seriam mais valiosas que as vidas dessas árvores, desses seres que nada mais fazem que se doar para que outros seres, mesmo seres imundos como vocês, possam existir?

Os homens estão mudos, completamente paralisados pelo medo.

─ Há alguma razão para que eu poupe as vidas de vocês?

Os homens estão chorando, seus olhares clamam por piedade. Nesse momento, um belo pássaro sobrevoa o grupo e segue até Anhangá. O Espírito ergue sua mão e o pássaro pousa em seu dedo, cantando.

─ Belo pássaro! Seu canto era o que alegrava essa Floresta, mas os roncos ensurdecedores das máquinas desses homens abafavam o som de sua voz. Não se preocupe… Agora poderemos ouvi-lo novamente.

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Sem desviar o olhar paternal do pássaro, Anhangá ergue sua mão esquerda em direção ao grupo e os homens se tornam cinzas, que são levadas com o vento.

Anhangá se afasta, levitando, observando o pássaro em sua mão; então o ergue como se dissesse “Voe”, e o pássaro segue cantando pela Floresta. Um pouco da cinza cai no nariz adunco de Anhangá; ele limpa.

─ Agora serão úteis, suas cinzas servirão de adubo para as plantas. ─ Anhangá comenta e se transforma em um Uirapuru brilhante, então segue seu voo sob o Céu azul.

***

Na vila, dois homens chegam correndo. Estão pálidos e transtornados. Uma mulher se aproxima deles.

─ Homi, que foi? ─ A mulher diz. O homem está totalmente traumatizado. O outro pede água. Eles são levados para dentro de um barraco.

─ Deixa os homi se acalmá. Depois eles conta o que viu. ─ Um homem fala para as pessoas que vieram saber o que havia acontecido.

─ Vamo pra fora, gente… Deixa os homi se recuperá. ─ A mulher diz.

Enquanto esperam, as pessoas da vila começam a criar suas teorias.

─ Aposto que viram espírito no mato. Essa gente fica brincando com a Natureza sem sabê o que ela é… ─ Uma senhora diz.

─ Que nada. Aposto que foi ataque de grilêro, ou coisa de fazendêro… ─ diz um rapaz.

─ Vai vê é o diabo. Esses homi não procura Deus… ─ Um senhor comenta.

A mulher, que levou os dois homens para o barraco, se aproxima do grupo.

─ Os homi tá doido… Dissero que viro Anhangá…

─ Anhangá? ─ Um senhor pergunta. Quase todos riem, exceto um garoto.

─ Por que vocês estão rindo?

─ Muleque, Anhangá é lenda… História antiga de índio. ─ Uma mulher comenta.

─ Num é história não. Eu já vi Anhangá várias vezes. Ele existe sim.

Todos riem. O garoto se irrita e vai para o mato.

Ao fim da tarde, o dono das madeiras vai até a vila procurar por seus funcionários, pois nenhum deles apareceu para dar satisfação dos resultados do dia.

─ Quero minha mercadoria.

─ Nenhum de nóis dois volta mais lá, moço.

─ E eu pago vocês pra quê?

─ Hoje num recebemo ainda, então, não te devemo nada. Se quisé, vai lá e pega sua mercadoria, tá tudo lá no chão.

O homem entra em seu veículo com três homens armados. Eles seguem até o local em que a “mercadoria” estaria.

Com lanternas acessas eles vasculham o lugar.

─ Veja! Há uma motosserra ali… ― Um dos homens grita.

Os homens se dirigem ao local onde está a motosserra.

─ Malditos! Não fazem ideia do quanto isso custa… ― O contratante se irrita.

Um homem grita ao longe.

─ O que foi? ― O contratante pergunta.

─ Não sei explicar, venham aqui ver…

Os homens correm até o colega.

─ Puta que pariu… Que merda é essa? — O dono da madeira diz.

─ Senhor! Há mais aqui…

Todos ficam chocados ao verem os corpos desconfigurados no chão.

─ Vamos embora. Já tá escuro. Amanhã voltamos com mais gente, então vamos ver o que aconteceu nesse lugar ― O contratante diz, assustado.

Uma coruja brilhante observa do alto de uma árvore.

Na manhã seguinte, os homens acordam cedo na fazenda e se preparam para descobrir o grande mistério do dia anterior. A história já havia se espalhado por toda a vila, e arredores, em várias versões. Na igreja, o pastor aproveitou para alimentar o medo nos corações de seus fiéis, ele sabia que o medo faria a “fé” se tornar ainda maior, além de aumentar o seu rebanho. Alguns grupos mais tradicionais acreditavam na existência de Anhangá e não o viam com maus olhos, pois sabiam que toda a fúria do Espírito só se voltava contra aqueles que não respeitavam a Natureza, então, o medo não encontrou lugar em seus corações. Mas na vila, todos estavam apreensivos.

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***

Um calango é esmagado pela bota de um homem alto, que carregava um fuzil, enquanto descia de um caminhão.

Cinquenta homens armados, destemidos, a maioria sem alma, estavam prontos para obedecer as ordens do “Coronel”, forma como chamavam seu empregador.

─ O grupo não deve se dispersar. Devemos ficar juntos, não sabemos com o que estamos lidando aqui. ─ O Coronel diz.

─ Sim Coronel. ─ O homem de confiança do Coronel movimenta os demais. ─ Vocês ouviram o Coronel. Vamos!

Todos seguem rumo ao desconhecido.

O local estava exatamente como no dia anterior. Troncos de árvores ainda no chão, intocados; as cinzas espalhadas pelo lugar, corpos secos no chão e motosserras por toda parte.

─ João! Tem algo estranho aqui…

─ Zé… Não é hora pras suas maluquices.

─ Não é maluquice.

João ignora o amigo e aperta o passo, seguindo o grupo.

Um assobio diferente faz Zé parar. Ele fecha os olhos e respira fundo, parecia estar “sentindo” o lugar. Os demais avançam. De olhos fechados, Zé começa a ouvir sussurros.

─ Vá embora!

Uma voz fria diz ao seu ouvido, lhe indicando o caminho para sua salvação.

José, o Zé, era neto de indígenas tradicionais; aprendeu muita coisa da Cultura Ancestral com seus avós, mas seus pais o criaram na vila, já haviam se perdido de sua raiz, mas Zé vivia em dois mundos. Na adolescência viu os pais serem mortos por capangas de um fazendeiro odiado na região; o garoto deixou que o ódio tomasse conta de seu coração e decidiu seguir o mesmo caminho dos assassinos de seus pais, mas mesmo seguindo esse caminho de trevas e ignorância, uma luz insistia em brilhar dentro dele. Era como se seus ancestrais tentassem salvá-lo, tentassem lhe indicar um caminho certo; e várias foram as vezes em que seu instinto o salvou da morte ou da perda total de sua alma.

Após ouvir os sussurros, Zé, lentamente, coloca sua arma no chão, então, entoando cânticos antigos, se despe, se pinta e começa uma cerimônia, inspirado por seus avós.

O grupo do Coronel continua avançando dentro da Floresta.

Ao fim da pequena cerimônia, Zé abre os olhos. Em sua frente está o grande Espírito, Anhangá. Ele olha nos olhos do homem.

─ Seu ódio o cegou, mas ainda não matou sua alma. Você nunca fez mal à Natureza… Procure o seu povo, ainda há esperança pra você.

─ Obrigado, Grande Espírito!

Anhangá desaparece. José segue o seu caminho, deixando para trás as tralhas que o impediam de ter uma existência plena.

Os homens do Coronel seguem com seus facões ferindo a Floresta.

─ Seja lá o que for, não é desse mundo… ― Um dos homens diz.

─ Não diga bobagem. Vamos! ― o Coronel diz enquanto segue à frente.

O caminho levou os homens até um rio.

─ Veja, Coronel! Para onde vamos agora?

Um pássaro azul cruza o céu até a outra margem do rio. O Coronel viu como um sinal.

─ Vamos atravessar. Veja se é fundo.

O rio não era muito fundo, e os homens começam a atravessar.

De repente, um crocodilo brilhante surge nas águas. Ele nada calmamente entre os homens. Os que ainda não haviam entrado no rio ficam apreensivos na margem. O Coronel já estava chegando ao outro lado.

Um dos homens pede calma.

─ Não fiquem com medo e nem façam movimentos bruscos.

─ Mas que bicho é esse?

─ Parece um crocodilo.

─ Desculpa, mas crocodilos não brilham, senhor!

─ Fiquem calmos, continuem andando devagar.

Enquanto os homens seguem devagar, o crocodilo continua nadando entre eles. Um dos homens não consegue seguir mais, o medo o paralisa. Ele entra em pânico, treme e começa a chorar. Nesse momento, o grande crocodilo brilhante se aproxima e o engole inteiro. O grupo na água entra em desespero e todos começam a correr e a nadar com pressa. Os homens na outra margem tentam atirar no animal.

Após devorar o homem, o crocodilo mergulha. Os homens, que não haviam entrado no rio, continuam atirando. Os outros conseguem chegar até a outra margem. Tudo parecia calmo, então os homens param de atirar. Enquanto se olham, assustados com o que acabaram de presenciar, uma enorme jiboia iluminada sai da água e, com expressão feroz, abraça todo o grupo de uma só vez. Ela observa o pavor daqueles homens, com o olhar em chamas, sempre mostrando sua língua. O outro grupo, do outro lado do rio, se sente impotente e só observa.

─ Vamos todos morrer… ─ Um homem diz, desanimado.

─ Vamos seguir em frente. Precisamos encontrar uma forma de nos proteger.

O Coronel segue à frente do grupo. Os homens seguem andando entre as árvores enquanto escutam os últimos gritos dos que ficaram para trás.

Na vila as pessoas comentam a expedição.

─ O Coronel não presta. Vai ter o que merece lá no mato. ─ Um homem comenta.

─ Uma vez minha mãe tava doente e ele me deu dinheiro pro remédio… ─ Outro homem diz.

─ E o que você teve que fazê pra ele?

─ Nada.

─ Nada?

─ É. Nada.

─ Não acredito…

─ Mais foi…

─ Ninguém é só maldade. A bondade tá no coração de todo mundo; é só a pessoa dexá ela tomá conta ― uma velha interrompe a conversa. Os dois homens sorriem para ela.

─ É verdade… Mais o Coronel gosta mesmo é da maldade.

─ Todo mundo erra, meu filho… A gente não deve julgá. E cada um colhe o que pranta.

─ É… pensando assim, dá até pena do Coronel. Ele já prantô muita coisa ruim nessa vida.

Na Floresta, os homens andam até escurecer.

─ Vamos acampar aqui. ─ O Coronel diz.

Eles ascendem uma fogueira e se ajeitam ao redor dela. Começam a preparar algo para comer. Há pouca conversa.

Enquanto comem, o silêncio é interrompido por um deles.

─ Por que ele não mata a gente de uma vez?

Agora o silêncio entre os homens reina absoluto; só se ouve os barulhos da Floresta, que soam totalmente ameaçadores.

Um grupo de macacos começa a jogar frutos e pedras na fogueira, os homens se afastam para se proteger do ataque. A fogueira é apagada e os macacos vão embora.

─ Malditos macacos!

Antes que uma nova fogueira se acenda, uma enorme árvore, que estava ali perto, começa a emitir um brilho encantador. O brilho vai se tornando mais intenso e ilumina o lugar. Os homens olham admirados.

Um deles tira o chapéu e se ajoelha diante da árvore.

─ Eu me arrependo por meus pecados, meu Deus, me perdoa!

─ Não sou o seu deus… Não tenho motivo para lhe perdoar ― uma voz firme como um trovão diz.

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Um brilho intenso toma conta da Floresta. Ele pôde ser visto a quilômetros. A luz de Anhangá fez com que os homens tomassem consciência de seus erros antes que a vida deixasse os seus corpos. Eles morreram conscientes de todo o mal que haviam causado nesse mundo e se arrependeram. Essa consciência foi sentida por outros homens por toda a Floresta, e, no dia seguinte, todos se uniram por uma causa antiga, o respeito e a proteção dos Seres da Floresta. Eles buscaram as comunidades tradicionais para aprender a Cultura Ancestral, que ensinava o parentesco da humanidade com os rios, os animais, as plantas… Enfim, os homens, tocados por uma consciência maior, voltaram a ver a Terra como a mãe da vida.

Na vila, o garoto que tinha sido motivo de risos por acreditar na existência de Anhangá, estava feliz.

─ Eu disse que Anhangá existe…

─ Como podemos saber que isso é verdade? ─ Um homem pergunta.

O vento sopra. O chapéu do homem é levado de sua cabeça.

─ Meu chapéu…

─ Vejam! ― o menino diz, cheio de alegria.

Folhas brilhantes brincam com o vento, no centro da vila.

─ É Anhangá!

As folhas vão embora. Uma delas fica no chão. O menino se aproxima. Quando pega a folha ela deixa de brilhar, mas fica uma frase escrita em letras prateadas.

“Não perca sua essência”.

Ilustrações: Alexandre Boaventura


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