Sentado à janela do ônibus quase vazio, João se distraía olhando o mundo que passava por ele naquela tarde. Tentava esquecer que aquela era a última viagem que faria na vida, e que o destino guardava a solução definitiva para suas angústias e lamentações. Ninguém naquele veículo poderia imaginar que aquele homem, aparentemente normal, era incapaz de chorar.

Na verdade, chorar ele até podia, mas isso era completamente desaconselhável. É que João nasceu com uma condição clínica muito peculiar. Sua pele e seu organismo eram totalmente sensíveis às suas lágrimas. Poucos segundos de choro causavam queimaduras graves no seu rosto, e as lágrimas rapidamente atingiam de forma nociva os seus músculos e órgãos, o que diminuía consideravelmente seu tempo de vida.

Foi difícil para ele lidar com isso no começo. O choro após o nascimento quase lhe custou a vida, e as lágrimas, tão frequentes na infância, lhe deixaram marcas permanentes no rosto. Mas João percebeu que precisava aprender a lidar com aquele problema, e foi exatamente isso que ele fez. À medida que crescia, seu cérebro foi criando um bloqueio a certas emoções, e o ato de chorar foi se tornando cada vez mais raro e sem sentido.

Ele começou a moldar a sua vida de forma a se esquivar de tudo que poderia lhe fazer chorar. Abandonou muito cedo o convívio com a família, com medo de perder entes queridos. Com menos de 20 anos, ele já vivia sozinho em um pequeno apartamento na periferia. Para não sucumbir à solidão, que também poderia lhe trazer lágrimas mortais, decidiu criar um animal de estimação. O escolhido foi uma tartaruga, que certamente viveria muito mais do que ele.

Da época de escola, João guardava lembranças nada emotivas. Evitou se relacionar com a molecada desde sempre. Não jogava bola, com medo de se machucar. Não matava aula temendo tomar broncas. Estudava muito para evitar frustrações. Sabia que assim venceria de forma plena seu principal inimigo. Passou imune à emocionante aprovação no vestibular de química, e atravessou a jornada acadêmica num misto de dedicação e seriedade.

Passou em um concurso e arrumou um emprego em um laboratório no centro da cidade. Gastava a maior parte do tempo trancado sozinho em uma salinha, tendo como companhia os tubos de ensaios. Evitou fazer amigos no ambiente profissional. Nunca reunia com a turma na hora do cafezinho, tampouco topava os convites para beber umas cervejas no bar da esquina. Aproveitava a monotonia do serviço público para vencer sua luta diária contra as emoções e as lágrimas.

É claro que João nunca teve uma namorada ao longo dos seus 40 anos, ou qualquer coisa que o valha. Não experimentou o prazer do sexo, seja com amor ou ocasional. Nunca se apaixonou, nem se decepcionou. Não levou um fora e nem arriscou um amor platônico. Diziam por aí que as consequências de uma desilusão amorosa poderia acabar com a sua triste vida em poucos minutos. Desse modo, João passou a vida inteira flertando com a indiferença e a solidão.

Como consequência dessas escolhas, ele também não teve filhos. Nunca soube como era a alegria de ver a cria dando os primeiros passos, ou falando as primeiras palavras. Não imaginava o prazer proporcionado por um abraço de criança, e nem a angústia de ver o filho doente, de cama. Quando se pegava observando os pais e filhos nas ruas, virava o rosto e atravessava a rua. Sabia por instinto que aquilo poderia ser nocivo a ele um dia.

João evitou ler romances, odiava música e só assistia filmes bobos, com histórias que não tinham lá tanta profundidade. Chico Buarque, Beatles, Shakespeare e Inarritú eram nomes proibidos em sua vida cultural. Especializou-se em besteiróis americanos, daqueles bem ruins, pra não correr o risco de chorar de rir. Eventualmente lia e assistia jornais. Ignorava as histórias tristes e notícias ruins, uma ótima forma de praticar sua indiferença. Depois ele percebeu que não era o único a fazer isso.

O ônibus breca em uma rua suja do Centro. João desce e caminha até uma casa com muro sujo e grades descascadas. O número era 333. Era lá mesmo. A ansiedade invade seu corpo, e ele começa a suar frio. Toca a campainha e espera longos 40 segundos, até que um homem barbado de jaleco branco aparece para abrir a porta. Era ele. Aquele era o homem que acabaria de vez com as dores da sua vida. E, de quebra, acabaria com a vida.

Enquanto andava pelo corredor da casa, João se lembrava de como tinha conhecido aquele rapaz. Foi há uma semana, em um bar bem próximo dalí. Cansado da sua vida de abdicações, e sob efeito de álcool, João puxou assunto com o barbudo que bebia ao seu lado. Contou a história da sua vida para o “novo amigo”, e confidenciou que gostaria de acabar com aquela maldição, ainda que isso lhe custasse a vida. O homem misterioso ouviu atentamente, e prometeu ajudar.

Chegando em um consultório frio da velha casa, o homem barbudo sorrio um sorriso frio e perguntou se João tinha certeza do que queria. Com toda frieza do mundo, ele disse que sim. O homem fechou a porta do consultório e abriu uma gaveta. De lá, tirou duas folhas de papel, e pediu que o “paciente” lesse todo o texto. Sem entender, João percorreu o manuscrito e logo percebeu que aquele texto, que parecia um conto, se tratava unicamente dele. Era a história de sua vida e suas abdicações. Essa mesma que você está lendo agora, amigo leitor.

João percebeu que sua luta pela vida era também um sacrifício doloroso e sem sentido. Que abriu mão de prazeres e alegrias em prol do que ele acreditava ser mais importante. As lágrimas começaram a cair e queimar o seu rosto, mas a dor não lhe incomodava. Ele continuava lendo, compenetrado. A cada palavra, mais lágrimas caíam, mais dor ele sentia, e mais prazer também. Quando terminou o texto, João olhou para o homem e sorriu um sorriso triste. Sentiu vontade de abraçar seu libertador, de dizer que o amava. Mas não deu tempo. João caiu sem vida no meio daquela sala, embora soubesse, naquele momento, que sem vida ele já estava desde que nasceu.


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