“E ela cantará por ti,

homem da terra.

E nenhum sonho será

pra ti consolo”.

 

Foram os únicos versos que meu conhecimento limitado da língua suanam conseguiu traduzir para o mundo civilizado. Mas estou ciente de que preciso contar o resto, tudo o que aconteceu desde o dia em que desci àquela caverna, desde que ouvi aquele som maldito pela primeira vez.

Gostaria de citar o dia, o local, mas conforme o som fica mais alto, tudo vai sumindo, cada pedaço de memória virando poeira.

O que lembro é da caverna, um emaranhado de madeira podre e pedra, restos de árvores e navios estrangeiros, todos marcados com segredos do Povo da Floresta Baixa, pintados com urucum ou cortados na rocha, mistérios de dias mortos e de uma gente que poderia falar com os animais, pelo pouco que sabemos.

Lembro também de pegar um pedaço de madeira velha nas mãos, uma fração de casca de árvore. Por que diabos eu tive que pegar aquilo?

Mas peguei, e foi quando ouvi a assombração, um vulto cobrindo minha vista, o som infernal que durou menos que um instante, mais que minha morte.

Um rasgo.

Uma tesoura cega passando por uma cortina.

Uma fera rompendo o tecido da vida.

Ainda não me fugiu o momento em que finquei, desesperado, as unhas na terra e nos restos de barco para sair daquela estranha biblioteca, da fome que se apossou das entranhas enquanto passava uma noite inteira vagando na mata antes de encontrar um vilarejo qualquer, mas sempre vendo algo pairar sobre mim. Pensei que fosse a morte, mas descobri que há coisas mais perigosas.

Mais tarde, quando falei aos locais sobre minha fuga da caverna (sem mencionar, talvez devido a algum instinto, a escritura que trazia na bagagem), deram um nome àquele som:

Suindara.

Um nome que eu esqueceria, não fossem as formas que eu via crescer no canto dos olhos, que desapareciam quando tentava encará-las. Via-as quando as cortinas se agitavam e a lua jogava-lhes sombras, quando andava nas ruas e percebia que, de alguma forma, os animais escuros sabiam meus segredos. O jeito que miavam ou piavam parecia dizer “ladrão”, mas dentre todos, o pior era a coruja, mesmo não sendo escura, mesmo não dizendo nada. Apenas me olhava quando a surpreendia em cima de algum galho ou telhado, e sua influência era onipresente.

Suindara.

O nome não tinha como ser de bom agouro.

No entanto, apenas quando traduzi aqueles versos odiosos foi que entendi: meu destino estava selado.

As marcas esverdeadas naquele pedaço tosco de madeira que trouxera daquelas matas, aquele espaço de um verde que parecia ter visto a aurora do mundo quando o mundo ainda não tinha consciência de si. Claro que aquela grafia, aquele idioma que se transcrevia em símbolos e glifos, contava alguma história, codificava algum segredo desse passado distante, dizia algo que não sabíamos.

Em minha arrogância, em minha curiosidade desmedida, desconsiderei que havia verdades sob a terra e sob a água que deveriam ser deixadas em paz.

Já vinha estudando os suanam havia algum tempo, mas até para mim aquele dialeto era complicado, e poucas foram as marcas que reconheci, ou que se revelaram após consulta de extenso material de pesquisa. Entenda, os suanam sempre foram um povo peculiar, seus costumes mais sagrados são um mistério até mesmo para os de seu próprio sangue.

Usei toda a minha habilidade, salvei daquele pedaço de árvore decadente os quatro versos já citados, tinha que ser eu quem traria o maravilhoso mundo da fechada Floresta Baixa ao conhecimento do homem contemporâneo.

Dar poesia àquela escrita tribal, que eu sabia ser feita com nada além de palavras de poder, trouxe o diabo de penas também ao meu sono, e agora o via claramente. Manchava meus sonhos com tons de castanho e branco, dois grandes olhos que insistiam em me seguir até quando a mente flutuava livre.

Curioso vir até mim justo agora o conceito de liberdade.

Não posso evitar de sorrir com a ironia.

A noite vinha, e vozes roucas sussurravam ao pé do ouvido. Repetiam a estrofe da canção ancestral, o refrão enfeitiçado ditando o tom que se apossava, pouco a pouco, de todas as horas.

Quando acordava, ouvia o rasgo, quando dormia, via seus olhos. Subia um cheiro de fumo, um que grudava nas minhas roupas, na minha pele.

Deus!

Esse fedor de fumaça transpira de mim feito um ranço cinzento, uma sujeira sebosa que mais parecia doença. Culpei minha viagem ao exterior, inventei uma doença tropical, mas nem eu me suportava.

E o rasgo.

Sempre o rasgo.

Meus nervos ferviam ao escutá-lo quando o cachorro latia, quando meu filho chorava, quando a porta bateu no dia em que minha mulher foi embora.

Em tudo ouvia o rasgo.

Estava só.

Não, nunca só. Eu e o inferno.

E isso crescia.

Peguei a lasca de madeira infernal e joguei ao fogo, ajoelhei e rezei tudo o que sabia. Queria ouvir Deus, olhar para o céu e sentir sua graça, mas só via a lua e seu olho de julgamento, escutava o bater de asas que eu já conhecia.

E o rasgo.

Minha voz é o rasgo, o movimento de cada borboleta também era o rasgo, e só por isso escrevo.

Só assim não escuto os rosnados de Satã às portas do meu juízo, nem o pio da coruja enquanto riscava minha janela.

O que quer que fossem aqueles versos, o que quer que fosse o conhecimento pagão cravado por loucos nas paredes daquela caverna, hoje entendo que eram páginas do livro de Deus, arrancadas pelos suanam sabe-se lá como, sabe-se lá o porquê.

Não lembro o nome do meu filho, nem o da mulher que jurei amar por toda a vida. Diabos, sequer lembro do meu, mas nunca sumiram de mim as marcas daquela caverna, mesmo que tenha visto só de relance os segredos da natureza que apenas o Povo teve direito de conhecer.

Cada verso.

Cada versículo.

Cada pajelança.

E aquela voz sem palavras.

Suindara.

Hoje, me pergunto se há algo atrás de mim, me espiando no escuro, esperando tranquila e pacientemente, ou seria apenas minha mente raspando os limites do lógico, morrendo por um esforço que não consegue mais suportar?

Não acho que exista resposta, ou se faria alguma diferença se houvesse, tenho apenas uma única certeza, olhando para o brilho acolhedor da .45 na mesa, que deixo para o mundo apenas como um aviso:

Que nunca digam que os suanam não sabem guardar seus segredos.

Capa: Ski-Machine