Esses dias resolvi revisitar um disco que me é colocado em alta conta. “The Dark Saga” da banda de heavy metal Iced Earth. Desenterrado dos recônditos da gigantesca lista de álbuns do Xbox Music (o Spotify da Microsoft) para minha playlist, “The Dark Saga”- lançado em 1996- é megapower recomendado para fãs de metal que se preze por ser um disco que cristalizou todo o arsenal de mecanismos composicionais do Iced Earth em torno do que eles conseguem fazer de melhor: as indefectíveis e intermináveis cavalgadas rítmicas da guitarra endiabrada de Jon Schaffer e suas progressões melódicas presumíveis aliadas a uma cozinha baixo-bateria precisa como o Big Ben, os duetos assoviáveis, e sim… a voz de Matthew Barlow.

Desde os três primeiros discos do Iced Earth está tudo lá (ou quase, já que o homônimo “Iced Earth” e “Night of Stormrider…de 1991 e 1992 respectivamente… tinham no vocal Gene Adam e John Greely…Barlow passou a ser parte da banda a partir de “Burnt Offerings, de 1995) e qualquer conhecedor da sonoridade da banda norte americana sabe que ouvir os discos do Iced Earth é ter uma experiência sonora cíclica… afinal, a banda entrega o mesmo serviço de alta qualidade para o ouvinte a cada álbum. O som do Iced Earth não muda, para a alegria e tranquilidade da legião de fãs que Schaffer & Cia possui ao redor dos quatros cantos do Planeta Terra.

O que torna The Dark Saga tão incrível?

Mas o que tornou “The Dark Saga” item basilar na discografia da banda a ponto deste humilde servo do Deus Metal se sentir tocado a escrever a respeito dele? Na minha simplória opinião, existem alguns pontos inéditos aqui: I – Parece que Jon Schaffer tomou um porre de destilados classudos e resolveu reunir os melhores riffs de guitarra de seu vocabulário (ainda que este limitado por assim dizer) despejando-os generosamente nas canções do álbum. II – Resolveram realizar um álbum conceitual sobre… SPAWN (de Todd McFarlane)… e de uma maneira em que o ouvinte tem a sensação de estar acompanhando a audição de uma única e extensa música com diversos climas que vão evoluindo de acordo com as ideias contidas nas letras das músicas que são referências diretas à mitologia contida nos quadrinhos desse querido anti herói criado pelo god McFarlane!

spawn

Quem é Todd McFarlane e Spawn?

Mas espere aí, pequeno leprechal. Se você chegou até aqui, e não sabe ainda quem diabos Spawn e McFarlane… um parêntese se faz necessário: Todd McFarlane é ilustrador canadense famoso por seus traços irregulares e ao mesmo tempo detalhistas e associação icônica com o upgrade visual que o Homem Aranha recebeu lá pelos fins dos anos 80. Trabalhou na sua juventude tanto para a DC quanto para a Marvel (sendo inclusive o responsável direto pela primeira aparição do Venon). Cansado de se foder trabalhar para os outros, resolveu fundar o Image Comics para publicar e distribuir suas próprias criações e ideias. E aí chegamos em Spawn.

Spawn foi um sucesso em seu lançamento no início dos anos 90. Seu debut rendeu cerca de 1,7 milhão de cópias vendidas. Àquela altura, McFarlane já era um pop star dos quadrinhos por ter sua imagem associada ao sucesso que o Espetacular Homem-Aranha havia obtido por meio do seu tracejado lânguido e sinuoso. Numa época de ressaca quadrinheira pela falta de criatividade dos grandes selos, o Image Comics chamou a atenção apresentando a história do agente da CIA Albert Francis “Al” Simons, cujo pacto com o demônio Malebolgia lhe rendeu o malfadado destino de se transformar em um… Soldado do Inferno.

Mas sim, vamos no situar melhor, aprendiz de gafanhoto lutador. Al Simons era um excelente cumpridor de seu dever como agente secreto do órgão de inteligência norte-americano. Ele era tão bom no que fazia que acabou sendo promovido a black op. Isso o levou a realizar diversas operações clandestinas a ponto de assassinar pessoas inocentes a serviço do Governo. Por fim: o feitiço virou contra o feiticeiro: Al foi assassinado em uma trama forjada pelo seu próprio superior, e por conta de seus crimes… sua alma foi enviada diretamente para o Inferno.

Transformando histórias em quadrinhos em músicas

E é nesse ponto que o Iced Earth se situa para contar a história de Spawn. O disco abre com a faixa “Dark saga” (Saga Obscura), chupinhando simplesmente trechos da primeira HQ do personagem. “O pacto não foi cumprido…há escuridão na minha alma…eu quero morrer… de novo”. A introdução suspensiva da música de abertura apresenta Spawn e sua gênese. No Inferno, Simons se depara com um dos senhores dos Demônios… Malebolgia. Por amor a sua esposa, Simon sela um pacto com o Mestre do Oitavo Círculo Infernal (este reservado aos amantes da fraude) para voltar à vida com um Soldado do Inferno com o intuito de revê-la. Entretanto, Simon obviamente se fode… é enganado pelo Demônio. Malebogia desfigura o corpo de Al lançando-o cinco anos após a sua morte sem memória. A música transcorre alternando momentos onde a guitarra de Schaffer dedilha acordes suspensivos com pontuações pulsantes no contrabaixo que servem de apoio para sonoridades distorcidas que representam um hipotético diálogo entre Spawn e Malebolgia que é interpretado com maestria pelos timbres escuros e ásperos da voz de Barlow. “Você deve aceitar o destino que escolheu, você obedecerá o seu destino.” Eu me iludi por amor…agora apenas para ver seu rosto, eu perdi tudo.”

É claro que Al Simon não aceita tal malfadado destino. Apesar de ter jurado servidão às hostes malignas na batalha do Bem contra o Mal, Al (agora como Spawn) decide não servir Malebolgia. Provido de poderes conferidos por ele através da força vital que mantém o oitavo círculo infernal (o Necroplasma), Spawn passa a perambular pelos becos de Nova Iorque combatendo criminosos e fazendo amizades com mendigos. Sua agonia por ter sido enganado por Malebolgia está bem descrita nos versos da segunda faixa “I died for you” (Eu morri por você). Sim, Al descobre que no lapso de cinco sua esposa Wanda Blake reconstruiu sua vida com seu melhor amigo Terry Fitzgerald tendo uma filha (de nome Cyan) com ele.  “ A dor foi muita…quando finalmente a vi… ela está feliz e amando…amando meu melhor amigo…”.

 

I died for you” segue praticamente a mesma fórmula da faixa de abertura, com acordes de guitarra sem distorção sendo dedilhadas nas estrofes enquanto Barlow destila um estilo de cantar balbuciante que lembra um lamento. O diferencial em tais trechos é justamente o repouso harmônico na construção das progressões que Schaffer apresenta ao ouvinte. Os tons graves que Barlow atinge com desenvoltura nas estrofes se entrecorta com o peso cadenciado que a cozinha da banda confere ao refrão “Oh como eu amo você… a dor não vai embora… Oh quando eu preciso de você, você está sempre tão distante”… chega a ser piegas a maneira como o Iced Earth representa o desespero de Simon frente à realidade com a qual ele se depara após seu retorno à Terra. Mas Schaffer nunca foi grande letrista… o Iced Earth é forte em seu conjunto e constância de material apresentado aos fãs, pois ao longo dos anos de estrada criaram sua própria estética musical e se sentem confortáveis em não abandoná-la. Formula perfeita para se transformar em grande nome no cenário Heavy-Metal.

Aqui tenho que abrir um parêntese para comentar um pouco sobre as três músicas seguintes do álbum que descrevem personagens chaves na história do Soldado do Inferno. “Violate” (Violente), “The hunter” (A caçadora) e “The last laugh” (A última gargalhada) retratam respectivamente o Violador, Ângela e Malebolgia e seu psicologismo em relação à trama do universo de Spawn. São canções pesadas e diretas com sonoridade raivosa… interpretadas por Barlow com incrementos de técnica vocal de drive e bonitos falsetes em meio a uma cozinha veloz e riffs de guitarra colados nos pedais duplos da bateria. Violate é tão violenta quanto o Violador. “Vou lhe surrar com sua medula espinhal… partirei seu crânio em dois…vou banquetear com seus intestinos… não há nada que eu não possa fazer… arrancarei seu coração de seu peito… observe-o batendo enquanto você chora… me divirto com sua agonia… te violento e te faço morrer. ”Membro mais velho dos Irmãos Flebíacos, o Violador pertence a uma alta casta de demônios servos de Malebolgia que são incumbidos por guiar os Soldados do Inferno recém-criados para realizar sua tarefa: destruir a humanidade e levar almas para o Inferno. Representado em sua forma humana ora como um palhaço gordo e de baixa estatura ora como um ser magro (porém igualmente horrendo), o Violador persegue Spawn por ele se recusar a realizar o trabalho o qual fora ordenado… é interessante notar aqui que através da segunda estrofe da canção o Iced Earth é feliz em retratar o desprezo que tal personagem tem pela raça humana através da maneira como lida com ela. O Violador tem fixação em devorar corações humanos, além do que… ele compreende que destruir o corpo humano usando extrema violência é uma afronta direta a Deus, que criou o homem à sua imagem e semelhança.

Além do Violador, Spawn também é perseguido por uma caçadora de demônios vinda do Paraíso: Ângela. “The Hunter” segue pesada, porém com um andamento mais cadenciado…com backing vocals operísticos no refrão que destacam as origens da personagem. “Descendo do céu… o anjo jurado para destruí-lo… a caçadora, o trovão… a fúria dos céus vindo para a Terra. ” Ângela é um anjo e caçadora de recompensas. Sua intenção é destruir Spawn para tê-lo em sua galeria de emblemas de Soldados do Inferno abatidos. Uma das mais ferrenhas e carismáticas antagonistas de Spawn. Curiosidade: a personagem foi vendida para a Marvel após seu direito de uso ter sido concedido a Neil Gaiman (o criador de Sandman) via batalha judicial que junto com outros artistas de peso como Frank Miller, Allan Moore e Dave Sim trabalharam com McFarlane na Image Comics. Gaiman apresentou a personagem na edição nove da fase clássica do Soldado do Inferno, evoluindo sua relação com Spawn a ponto de ser ajudada por ele durante seu julgamento no Paraíso quando acusada de traição. Ângela a partir desse ponto tornou-se renegada pelos céus e passou a ser uma caçadora autônoma… já personagem do cast da Marvel participou da série Era de Ultron e Pecado Original, onde inesperadamente foi relevada como a irmã de Thor!

 

Por fim, faixa seguinte retrata… Malebolgia, Senhor do Oitavo Círculo Infernal e criador do Spawn. Na verdade, Spawn não é o único Soldado do Inferno criado por ele. Já nas primeiras edições é revelado que os spawns são criados de cinquenta e cinquenta anos (pois isso consome os poderes de Malebolgia) e que assim como Al “Spawn” Simons, existem outros Soldados do Inferno (Spawn por exemplo… conhece Cogliostro, o primeiro spawn nos becos de Nova Iorque).“Sou seu pai o destruidor da luz… tirei sua alma e te dei vida… você é o condenado pela minha mão… meu filho, criatura da noite. ” O trecho da letra constrói a relação criador-criatura entre Malebolgia e Spawn através do pacto selado entre ambos em meio a sonoridade crua e veloz que a canção imprime ao ouvinte. Por sua rebelião, Malebolgia recorrentemente ameaça Spawn de tomar seus poderes, relembrando do seu pacto e sua condição de fonte de poder em relação ao Soldado do Inferno. Ao longo das histórias que se desenvolvem no universo de Spawn, o leitor toma conhecimento que Malebolgia vive às turras com outros demônios de outras esferas dos ciclos infernais, sendo inclusive assassinado por Spawn com a ajuda de Ângela.

Duas peças menores que fazem parte do álbum são “Depths of Hell” (Profundezas do Inferno) e “Scarred” (Marcado). Em “Profundezas do Inferno” um ponto de destaque é a citação sobre o estado de “não memórias” de Al “Spawn” Simons durante a saga em que ele se transforma em uma criatura angélica. Spawn tem uma noção fragmentada do seu passado humano após sua transformação em Soldado do Inferno. “Pedaços estilhaçados de seu passado… sonhos quebrados entre os mortos” são versos que podem ser encontrados ao longo de todas as aventuras do personagem. É bom dizer aqui que apesar de Al Simons amar muito sua esposa a ponto de realizar um pacto demoníaco para revê-la… ele também deu bolas foras em seu casamento. Spawn não tem noção que seus erros do passado para com Wanda lhe renderam violência doméstica e aborto induzido (só para citar alguns deles). Assim como o primeiro spawn (Cogliostro, onde posteriormente é revelado ao leitor que ele na verdade é Caim, responsável pelo primeiro assassinato na Terra), Al Simons é uma criatura “marcada ” para eternamente viver sua maldição pessoal de ser rejeitado por Deus e viver uma eternidade de consciência atormentada (“a marca da besta no meu corpo… marcando-me para a vida eterna. ”) por ter aceitado poderes das hostes das Trevas para se transformar em seu General. Isso inclusive é um ponto que leva o Violador a se rebelar contra Malebolgia, pois apesar de ter grandes poderes e respeito no mundo infernal, o Violador se ressente pelo Senhor do Oitavo Círculo Infernal conferir aos humanos essa espécie de honraria, por considerá-los uma raça menor e desprezível. Pessoalmente considero ambas as faixas as mais fracas do álbum, não acrescentando em nada às ideias já expostas ao ouvinte, mas está lá… tudo o que o Iced Earth sempre faz… sem medo de ser menos que eles mesmos.

Entretanto, “para nossa alegria”… a audição de Dark Saga não acaba de forma morna. As três últimas faixas encerram o disco de forma magistral. “Vengeance is mine” (Minha é a vingança), “Slave to de Dark” (Escravo do Escuro) e “A question of Heaven” (Uma questão de Paraíso) formam a tríade “cereja do bolo” do álbum. “Minha é a vingança” e “Escravo para o Escuro” exploram o psicologismo do Spawn que é o protótipo bem-acabado do anti-herói literário, afinal suas motivações pessoais para destruir as hostes demoníacas não são nada altruístas. Em sua tentativa de se manter neutro na guerra entre Paraíso e Inferno, Spawn acaba transitando pelos dois Universos… ora sendo perseguido por ambos ora sendo auxiliado por algum dos lados (é bom lembrar aqui que Malebolgia é destruído por Spawn, porém com a ajuda de Ângela… além de Spawn ter recebido ajuda do Senhor dos Milagres …uma das encarnações da “Mãe”). “Pelo sangue do cordeiro eu tenho que destruí-lo… Sem Deus, sem o Diabo, desta vez eu ganhei…” são versos cantados com extrema agressividade por Barlow em meio a um instrumental veloz em “A vingança…” bem representativos da tipificação de anti-herói proposta por McFarlane quanto ao protagonista do seu universo criado e seu pensamento torto em por vezes crer ser necessário auxílio de forças benignas para objetivar seu intento.

Tal ideia é reforçada já nos primeiros versos da abertura da apoteótica e voraz meio a duetos de guitarra velozes e falsetes na poderosa voz de Barlow “Escravo do Escuro”… Um confuso pensamento, gira em torno de dois mundos… um deles é o novo que me odeia e o outro que traz verdade…” é bom destacar aqui que o Senhor dos Milagres que age como um “guia” para Spawn em diversos momentos de suas aventuras – como sendo uma das encarnações da “Mãe” – vez ou outra vem a Terra para promover evolução espiritual aos homens personificando seres superiores como Jesus Cristo.  Além disso, ainda existe um poder que ocasionalmente interfere na batalha entre Paraíso e Inferno: o Mundo Verde… que é uma espécie de terceiro poder, onde seus habitantes são em sua maioria plantas… governados pela “Mãe”…que é Gaia… criadora de Deus e Satanás. Gaia personifica o Guardião, entidade sentinela do Mundo Verde. Em suas conversas com a “Mãe”, Spawn recebe poderes dela como a sensitividade (sendo capaz de perceber “emocionalmente” o mundo ao seu redor) e a geocinese (com isso Spawn aprende a dominar os elementos que formam a terra) na saga contra Urizen (poderoso demônio que tenta destruir o Mundo Verde). Essas relações tortuosas com os três universos que cercam o destino da Terra tornam Spawn um personagem singular, pois seu contato com eles acaba por deturpar mais e mais sua mente frente à sua noção sobre as motivações de cada poder no contexto de luta entre forças pelo domínio do planeta.

O epílogo para o álbum é a semi-balada climática “A question of Heaven” (Uma questão de Paraíso). Entre dedilhados lúgubres e uma cozinha comedida, Barlow canta emotivamente os versos de lamento “me vendi, a esta foi minha morte… sei que você não pode me perdoar… sei que estou sozinho … eu traí você” para resvalar em uma interpretação odiosa acompanhado a sonoridade agressiva da banda que em seguida toma corpo na ponte que antecede o refrão em forma de sentença e interpretado por vozes angelicais: “me pergunto por que não diz o Senhor junto a ti…você escolheu sua própria sina e seu próprio destino… privado desta vida, é o que lhe acontecerá…” Esse é o destino de Al “Spawn” Simons. Condenado a ser uma criatura satânica de destaque nos exércitos infernais para promover desgraça na Terra, nosso anti-herói não aceita sua estrada rumo à Escuridão, se envolvendo em batalhas intermináveis contra os poderes que o perseguem – tanto do Inferno quanto do Céu – e ainda sim tendo plena certeza que todos os seus esforços são inúteis para obter a concretização de seu desejo: sua amada esposa e sua vida simples de volta. Simons sabe disso, e Barlow retrata tal consciência nos últimos versos onde ele os interpreta de forma espetacular por meio de falsetes de timbre metálico saturados por drives, atingindo assim com desenvoltura notas altíssimas. Um verdadeiro deleite para os fãs e uma aula de técnica para os que atuam como vocalistas do gênero.

Enfim, jovens… por todos esses atributos… uma legião de fãs ardorosos do Heavy Metal considera “Dark Saga” audição obrigatória para os que curtem o estilo. Não duvido de que muito da feliz coincidência do Iced Earth ter desovado esse excelente álbum é tributária também à inspiração que Spawn e seu universo maravilhoso proporcional à banda no processo criativo das canções. Espero que tenham gostado do texto e comentários são bem-vindos! Elogie, critique… ofenda (claro, só não vale xingar a mãe…)! Abraços e …inté mais.