Hoje vou falar sobre a minha franquia favorita de jogos de luta, Soul Calibur, o motivo é que nesse ano será lançado um novo capítulo desse conto de espadas e almas. Nada mais justo que mostrar a importância dessa franquia falando do jogo mais importante, que na minha opinião é o jogo de luta mais revolucionário de todos os tempos depois de Street Fighter 2.
Soa de maneira pesada quando se fala em paradigma, que nada mais é que a organização de pontos de vista sobre um aspecto da realidade. O filósofo Edgar Morin fala que os paradigmas são princípios que governam nossa visão de mundo e controlam a lógica dos nossos discursos, a quebra deles seria a apresentação de uma nova forma de pensar. Neste caso em específico, Soul Calibur em 1999 mostrou que os consoles podiam sim, enfim, superar os arcades, e isso é bem maior do que parece.
O começo de uma jornada
A franquia Soul Calibur surgiu com um jogo de nome diferente, Soul Blade (Soul Edge no Japão), que foi lançado no finalzinho de 1995 nos arcades. Apesar de não apresentar nada tão bombástico, o jogo mostrou qualidade em todos os seus aspectos técnicos, estilo de luta peculiar entre os personagens que usam armas diferentes, cenários bem detalhados. Ao contrário da maioria dos concorrentes, onde a arena era somente o chão e uma imagem de fundo para preencher o horizonte, Soul Blade construía melhor o ambiente em torno do combate. O enredo do jogo se passa no século XVI, centrando-se na espada lendária Soul Edge, que é perseguida pelos personagens por diversos motivos, sejam com boas ou más intenções. Em jornadas que correm o mundo inteiro, cada personagem tem sua relevância, até aqueles que não participam do foco narrativo principal, todos acabam constituindo uma rede de interações, estabelecendo relações de rivalidade ou amizade que se estendem para os outros jogos.
Nem tudo que é inovador funciona da primeira
Em 1998, para os arcades, foi lançada a sequência para Soul Blade, que ao invés de vir com o 2 a frente do título, mudou para Soul Calibur, o qual se estabeleceria ali por diante. O nome por si estabeleceria um novo componente para o enredo da franquia, o contraponto da Soul Edge, que é a espada maligna, enquanto a Soul Calibur é a espada do bem. Essa dualidade entre as espadas foi representada pela personalidade dupla do personagem Siegfried, que via emergir seu lado maligno, Nightmare, que possuía a Soul Edge e devastava toda a Europa na busca de almas para fortalecer sua arma. Esse dualidade de luz e trevas se relacionando com conflitos internos que vemos em alguns personagens foi um tom que a franquia adotou bastante ao longo de sua vida.
Soul Calibur foi o primeiro jogo de luta em 3D em que os personagens poderiam se movimentar livremente pelo cenário, essa mecânica é conhecida como 8-Way Run. Explicando melhor, os dois lutadores se enfrentam num eixo, indo para direita ou esquerda da tela, o que diferencia em cenário 3D é a possibilidade dos personagens se moverem para outros eixos, isso é feito com os passinhos (sidesteps) dos personagens, ou vindo para frente na tela ou indo para o fundo da tela. O que Soul Calibur trouxe foi a movimentação livre, ou seja, apenas segurando o direcional para cima ou para baixo você mexe o personagem pelos eixos, à medida que para executar os sidesteps são dois toques rápidos ou para cima ou para baixo.
Uma das coisas que acho mais legais de qualquer inovação de mecânica, é como algumas existem a partir de pequenos detalhes. Por que esse 8-Way Run não foi algo do Tekken e sim de Soul Calibur? Pelo simples fato do jeito como o personagem se defende, no Tekken é segurando o direcional para trás e no Soul Calibur é em um botão, X no Playstation e A no Xbox. Essa diferença, que parece algo totalmente sem relevância, foi fundamental para essa movimentação livre ser possível em Soul Calibur, como esse pioneirismo poderia partir de um Virtua Fighter ou Dead Or Alive, nos quais a ação de se defender também depende apenas de pressionar um botão. Vamos pensar o seguinte, se podemos nos movimentar livremente nos eixos, se o comando fosse segurar o direcional para trás, assim que o oponente se aproximasse, o seu personagem ficaria parado em posição de guarda ao invés de se afastar do golpe. Como fazer uma programação que pudesse diferenciar o momento em que você quer se defender ou quer se afastar? Lembrando que, dependendo do jogo, a guarda não anula 100% de dano e também há títulos em que a defesa tem um limite, para impedir o jogador de ficar se protegendo o tempo todo. Para quê um esforço maior dos desenvolvedores se existe um botão de guarda que se diferencia da intenção de evitar um golpe?
Outra adição interessante que Soul Calibur trouxe foi uma flexibilidade nos combos, onde instantes antes do término de um golpe, o jogador já poderia emendar o próximo, não precisaria acertar o timing certo naquele segundo específico após terminar um movimento. Realmente Soul Calibur trouxe novidades bem interessantes para o gênero, mas os números da versão arcade, que era jogada apenas no Japão, não agradaram a Namco, e esse resultado por pouco impediu que a empresa lançasse o jogo para o Dreamcast no ocidente.
A quebra de paradigma
Soul Calibur foi lançado no ocidente como um dos títulos iniciais do Sega Dreamcast, em 1999. O jogo era utilizado como chamariz para o quão o Dreamcast era um console de próxima geração comparado ao Playstation, Nintendo 64 e o próprio Sega Saturno. O Soul Calibur não apenas trouxe um impacto para o que se tinha nos consoles, mas quebrou um velho paradigma que existia desde quando se surgiu a possibilidade de jogar videogame em casa: que os consoles oferecem uma qualidade gráfica inferior às máquinas de fliperama. Essa diferença inclusive contribuiu para o Crash de 1983, onde a indústria dos jogos entrou em colapso, e um dos fatores foi o lançamento do Pac-Man para o Atari 2600, onde as pessoas criaram a expectativa de ter aquele mesmo jogo na sua casa, o que na verdade foi bem distante, a sensação real é que se tratava de um jogo no mesmo nível daqueles inúmeros que se repetiam na época.
Era comum a seguinte trajetória, um jogo é lançado no arcade e no ano seguinte chega aos consoles com os gráficos inferiores. A própria Namco com Soul Blade e Tekken colocou mais conteúdo na versão de Playstation, logicamente porque no console o jogador tem mais tempo de jogar, no fliperama o foco é apenas zerar. Tirando a questão de conteúdo, ainda existia o fato de que o jogo do arcade era dito como sua versão final, sua melhor experiência. Nem mesmo outros títulos do Dreamcast como Sega Rally Championship e Virtua Fighter 3 conseguiram essa proeza de superar os arcades. Soul Calibur conseguiu, com menos de um ano para ser finalizado a tempo do lançamento do console no ocidente, talvez porque teve de retrabalhar aspectos e não apenas adaptá-los a um novo sistema.
John Linneman da Digital Foundry faz um trabalho muito bom na investigação dos gráficos de grandes clássicos, e ele fez um excelente comparativo que mostra o quão assustadoramente superior é a versão do Dreamcast em relação a versão do arcade.
Hoje em dia é natural pensarmos que em algum momento isso iria acontecer, que os consoles superariam os arcades. O cenário que temos atualmente é uma menor presença dos fliperamas no nosso cotidiano e no noticiário no meio dos games, de vez em quando vejo uma ou outra máquina em uma loja ou barzinho, sempre com um The King Of Fighters 2002 (geralmente com hack) ou um Metal Slug. Com esse contexto que temos atualmente é fácil dizer que os consoles superariam os arcades, mas naquela época foi uma quebra de paradigma, realmente o jogador não precisaria mais sair de sua casa para ter a melhor experiência de um jogo.
Um cenário meio viajado, mas para traçar um paralelo de como uma quebra de paradigma funcionaria hoje, é pensar em um jogo lançado para computador que no ano seguinte rodará melhor em um console. A partir disso se estabeleceria que os consoles a partir desse momento terão jogos com qualidade superior ao que o PC pode oferecer. Mas essa quebra é bem mais improvável de acontecer. Fica meio difícil pensar qual é o próximo paradigma tecnológico que pode ser quebrado nos videogames, independente de dispositivos periféricos como da realidade virtual por exemplo, será que nesse contexto o Soul Calibur é um caso único? Na verdade a melhor opção mesmo é ser surpreendido pelo futuro.
A lenda que nunca morrerá
Não sou uma pessoa que liga tanto para gráficos, na verdade a evolução dos videogames não está diretamente ligada as inovações tecnológicas, mas na maior possibilidade de construção de novas formas de jogabilidade, explorar tipos de narrativas só possíveis nos games. Com a tecnologia que temos desde a geração passada (PS3 e XBOX 360), as possibilidades de imersão se ampliaram bastante e os jogos independentes com poucos recursos continuam mostrando que isso é verdade. Não ligo tanto para gráficos, no entanto, é curioso descobrir como eles influenciam a experiência de um jogo, como alguns jogos utilizam da tecnologia para construir aquele momento tão marcante na vida de um jogador, principalmente quando desenvolvedores fazem um trabalho marcante lidando com tantas limitações tecnológicas, e a partir disso nós percebemos a real criatividade nesse processo.
Os anos se passaram, e mesmo assim a franquia Soul Calibur é lembrada como uma das mais importantes de jogos de luta. Mesmo que a relevância da série não seja a mesma de quinze anos atrás, em que a qualidade de seus jogos era algo ainda bombástico. O primeiro Soul Calibur foi um jogo que abalou as estruturas, em especial fora de seu gênero. Por mais que tenham existido inovações em jogos de luta, elas serviram apenas dentro do gênero, como por exemplo o modo história do Mortal Kombat 9, que foi revolucionário, mas… para um jogo de luta. Soul Calibur foi um marco para os videogames em geral, está presente em algumas listas entre os melhores jogos de todos os tempos, no Metacritic por exemplo, ele aparece em quarto. O mais curioso era que Soul Calibur corria um risco de não ser desenvolvido para o Dreamcast. Será que se Soul Calibur não fosse do jeito que é, teríamos um novo jogo da franquia sendo lançado depois de duas décadas?