Parte fundamental da cultura geek, a literatura fantástica vem dando um espaço cada vez maior, nas inúmeras possibilidades que oferece para que histórias sejam contadas, para representar a comunidade LGBT em suas páginas, tão parte de seus mundos fantásticos quanto do nosso. Pensando nisso, selecionei quatro personagens (um para cada letra) que levaram essas questões para a cultura geek, e nos fizeram sentir um pouco mais celebrados no mainstream.

 

L de Lésbicas

 

É improvável, para quem tem acesso ao serviço de streaming Hulu, não estar aterrorizado pela visão de mundo que a série The Handmaid’s Tale apresenta: uma sociedade totalitária que exerce controle sobre as mulheres férteis, utilizando-as como máquinas de reprodução para as classes dominantes. Baseada na fantasia distópica O Conto da Aia (1985), de Margaret Atwood, o enredo apresenta poderosamente o drama das personagens lésbicas, especialmente perseguidas por esse regime.

Na trama, temos Emily e Moira, duas personagens que sequer se conhecem, embora vivam sob o mesmo código: submissão, não. Chamadas de “traidoras do gênero” por se recusarem a uma prática sexual reprodutiva, são alvo das punições mais cruéis do governo, sem nunca se desviar do sonho de viver plenamente a sua sexualidade: amar da forma que decidirem, mesmo que tenham que matar ou morrer por isso.

 

G de Gays

 

 

Os mais bem representados na cultura geek, não é de se estranhar que os gays tenham tomado a dianteira ao povoar as páginas da fantasia. Um dos mais recentes é o muçulmano Salim, posto por Neil Gaiman nos textos de Deuses Americanos (2001). Embora esteja adorando a participação expandida de Salim na série televisiva homônima da Starz, sua breve passagem pelo enredo de Gaiman já é digna de nota, pois representa um lado dos gays que raramente se vê em tais abordagens: o de dentro.

Na trama original (muito semelhante à adaptação), Salim se apaixona por um Jinn, uma espécie de gênio da cultura islâmica, e a delicadeza apaixonada com que Gaiman descreve o sexo entre os dois deixa claro que há algo mais além do ato. É a rara representação de um homem gay que não foi resumido à prática sexual, mas que, a despeito do preconceito que permeia a religião da qual é devoto, encontra em seu amante (uma das figuras espirituais de sua cultura) a benção pela qual sempre rezou, encontrou Deus e um novo propósito de vida na consumação de um amor que ocorreu naturalmente, a partir das histórias que ouvia da avó.

 

 

 

B de Bissexuais

 

 

Em A Tormenta de Espadas (2000), George Martin nos apresenta uma cultura acostumada a contrariar os padrões de uma sociedade moldada ao gosto medieval: os dorneses. Quem acompanhou a série da HBO em 2014 teve uma boa ideia de como o povo de Dorne encara os costumes tradicionais de Westeros no que diz respeito a relacionamentos: eles amam, ponto. A bissexualidade não era apenas uma orientação sexual em Dorne, era um costume.

Não há nada que impeça um dornês de amar, tampouco ideias banais como matrimônio ou gênero, e não era incomum que até mesmo casais convidassem quem desejassem para partilhar sua cama, como faziam Oberyn Martell, príncipe de Dorne, e sua amante, Ellaria Sand.

 

 

T de Transexuais

 

 

A gente percebe que uma comunidade é mal representada quando temos dificuldade em encontrá-la refletida na cultura pop, e não nos enganemos, a comunidade trans ainda é a minoria mais marginalizada dentro da sigla. A dificuldade em vê-la nas páginas de literatura fantástica foi tanta que tive que recorrer a um romance obscuro, ainda inédito no Brasil, para lhe fazer justiça.

Trata-se de Full Fathom Five (2014), terceiro livro da saga de romances isolados de Max Gladstone, cuja protagonista é Kai, uma sacerdotisa corporativa (um termo que por si só já instiga curiosidade em um mundo que ignora o estado laico). Nascida em um corpo no qual não se encaixava, foi permitido a Kai trocá-lo para tornar-se compatível quando aderiu ao sacerdócio, o que a caracteriza como uma mulher trans, e uma das poderosas.

Se falta algum estímulo para treinar seu inglês e ir se aventurar no universo cuidadosamente construído de Gladstone, saiba que um dos poucos autores a trazer a temática trans para a literatura fantástica já trabalhou ao lado de George Martin em sua prestigiada série Wild Cards, parceria que certamente lhe rende boas credenciais no ramo.


Rebelde por natureza, a literatura fantástica tem se mostrado terreno fértil para tratar de discussões sobre representatividade e um canal indispensável para injetá-las na cultura geek, que (graças aos deuses e à cultura da informação) vem lembrando-se de que é um espaço acolhedor, um que sempre recebeu os rebeldes e os incompreendidos, um lugar de aceitação.