Nenhum outro jogo me ensinou tanto a perder preconceito com uma obra quanto o primeiro Lords Of Shadow. Como fã da franquia Castlevania, com a experiência de dezenas de jogos zerados, o meu primeiro contato com Lords Of Shadow foi de pura decepção. Porém, felizmente, dois anos após seu lançamento, com mais paciência, pude rejogá-lo e melhor apreciá-lo, entendendo qual era o objetivo em revitalizar Castlevania. A saga Lords Of Shadow começou com um jogo bem avaliado, porém controverso, e encerrou de uma forma totalmente confusa. Afinal, por que a saga Lords Of Shadow não deu certo?
Estabelecendo um novo universo
O primeiro jogo desse reboot foi lançado em 2010, pela desenvolvedora espanhola MercurySteam. O objetivo do projeto era emplacar a série com a jogabilidade em 3D, com um tom mais sombrio, fugindo de uma temática que acreditavam ser juvenil. Hideo Kojima (criador da série Metal Gear) participou da produção, ajudou na direção de arte dos personagens, a fim de humanizá-los. A narrativa mais cinematográfica do jogo é um dos indícios da colaboração de Kojima.
Castlevania: Lords Of Shadow é uma nova linha do tempo. O jogador assume o papel de Gabriel Belmont, membro da irmandade da luz que protege os inocentes de perigos sobrenaturais, em um período conhecido como O Fim dos Dias, no qual o equilíbrio entre a Terra e o Céu está instável. Além de provocar a ameaça de monstros, esse desequilíbrio impede com que as almas dos mortos encontrem paz, permanecendo eternamente presos no plano terreno. Entre as almas presas está a esposa de Gabriel, Marie, que foi brutalmente assassinada. Eventualmente, ela consegue entrar em contato com o marido, avisando que deter os Senhores da Sombra é o meio de salvar o mundo. Zobek, outro membro da irmandade da luz, conta a Gabriel sobre uma profecia de que um guerreiro de coração puro poderia reivindicar os poderes dos Senhores da Sombra e trazer de volta o equilíbrio e, com isso, a esperança de trazer Marie de volta.
A história de Lords Of Shadow se foca em trazer o épico, um personagem cuja redenção é trazer seu grande amor de volta da morte. Esse tom épico está presente em todos os cantos, desde metáforas na narrativa à mudança completa da trilha sonora, que se adapta ao visual do jogo, composto de cenários bem caprichados. O jogador nunca se cansa da ambientação, pois ele é constantemente apresentado a uma composição nova e brilhante. A câmera costuma chamar atenção intuitivamente ao seu destino, dando um prenúncio da ameaça que você pode encontrar, de uma forma bem sutil. Inclusive, em momentos de gameplay, o jogo te dá uma pista para uma situação importante que você vai vivenciar no futuro, o recurso narrativo conhecido como foreshadowing.
Porém nem todas as qualidades narrativas foram unânimes. Lords Of Shadow é dividido por capítulos, nos quais cada fase tem narração inicial de Patrick Stewart (professor Xavier nos filmes dos X-Men), que interpreta Zobek. A jornada de Gabriel é narrada como um livro, inclusive a própria interface de menus é controlada como um, a escolha das fases principalmente. Muitos reclamaram que isso quebra o ritmo do jogo, pois envolve constantes loadings, e algumas fases são segmentos onde Gabriel sequer tem algum confronto.
A maior crítica ao jogo é o fato de ser pouco autêntico para uma série tão clássica, pois se pode notar inspirações claras em God Of War, no combate; em Prince Of Persia, nos quebra-cabeças e escalada e em Shadow Of The Colossus, na luta contra chefes gigantescos. Porém em seu combate, Lords Of Shadow não é apenas um esmaga botões, pois sua maior qualidade nesse aspecto é apresentar uma dinâmica diferenciada, que consiste no jogador alternar entre os poderes da luz e das sombras. O primeiro quando ativado permite com que Gabriel recupere sua vida ao atingir os inimigos, o segundo permite maior dano. Com essa dinâmica, o jogador é exigido a tomar riscos, saber o momento certo para usar seus poderes, enquanto para tê-los novamente à disposição é necessário evitar danos.
O jogo oferece um enredo surpreendente, que quebra algumas convenções básicas de uma jornada do herói. Mesmo possuindo furos e ambiguidades que deixam a narrativa inconsistente em alguns momentos, num todo a história é ótima, sobretudo se comparando com os outros jogos da série Castlevania. Alguns reclamam que Lords Of Shadow possui mais horas do que um jogo do gênero hack n’ slash precisa, mas acredito que os momentos de quebra-cabeça ou onde Gabriel simplesmente está indo de um lugar ao outro nos belos cenários oferecem um balanço bem orgânico com as batalhas, algo que não é tão comum nesse gênero.
Quando entendi a proposta de Lords Of Shadow, passei a enxergá-lo como um terreno fértil, onde dali em diante poderia ser adicionado mais da identidade Castlevania. Com boa vontade da Konami, havia a possibilidade de se trabalhar nessa linha do tempo por anos, mas o otimismo não passaria do primeiro jogo.
Uma sequência confusa de eventos
O primeiro motivo de desconfiança para o futuro foi a afirmação de que Lords Of Shadow 2 fecharia essa saga, e a seguinte pergunta me veio: será que os elementos clássicos de Castlevania poderiam ser bem incrementados após o primeiro jogo? Ou a história de Gabriel seguiria com uma ou outra referência aos clássicos? A prioridade dessa postagem é estabelecer um paralelo entre os dois principais jogos: Lords Of Shadow 1 e 2. Porém no meio do caminho, Mirror Of Fate, título lançado para o Nintendo 3DS em 2013, foi lançado. Deu para notar rapidamente que a MercurySteam buscava quebrar a desconfiança dos fãs mais antigos.
O jogo, dentro das limitações de um portátil, buscou trazer a mesma dinâmica de ação de um hack n’ slash para uma perspectiva em 2D, e apesar de possuir um caráter exploratório, não é um MetroidVania no todo. Em relação a seu enredo, Mirror Of Fate tentou encaixar três personagens clássicos da série no mesmo jogo, e nisso definiu que Alucard seria Trevor Belmont transformado em vampiro. Essa é uma decisão que, antes mesmo de lançar o jogo, eu já considerava errada, pois esses dois personagens são entidades dentro da franquia. Uma consequência dessa fusão de personagens pode ser vista, por exemplo, em pessoas estranhando Trevor e Alucard lado a lado na série Castlevania da Netflix. Apesar da narrativa de Mirror Of Fate ser interessante, sobretudo o ponto de virada que ocasiona a transformação de Trevor em Alucard, percebe-se que a MercurySteam se preocupou mais em tentar agradar o fãs do que estabelecer a história com a mesma naturalidade que foi com o primeiro Lords Of Shadow.
No dia 25 de fevereiro de 2014, Lords Of Shadow 2 foi lançado e rapidamente causou estranhamento para quem o jogou. Para ser bem amigável de início, Lords Of Shadow 2 acertou em algumas coisas, o combate evoluiu, os poderes de luz e sombras se tornaram armas específicas que contribuíram para uma maior diversidade de combos por conta de diferentes animações proporcionadas. Fora que o jogo possui uma árvore de combos, provocando uma não-linearidade na evolução de Gabriel. Outro acerto de Lords Of Shadow 2 foi o visual de alguns personagens, remetendo mais a estética da franquia Castlevania. Os principais exemplos são Gabriel, Alucard e Carmilla.
Para situar o enredo, Gabriel acabou se tornando Drácula pelas consequências dos eventos primeiro jogo. Após quase 500 anos adormecido, é acordado em 2006 totalmente debilitado, se deparando com o velho companheiro Zobek, que o informa sobre os acólitos de Satã que estarão preparando um ritual para ressuscitá-lo. O grande motivador de Gabriel para aceitar essa luta é a esperança de encontrar um fim para sua maldição, sua imortalidade carregada de tristeza e ódio. Até esse ponto nenhuma novidade, já que esse é o epílogo do primeiro Lords Of Shadow. Gabriel volta a sua aparência saudável após se alimentar e inicia sua jornada atrás dos acólitos, em uma cidade que se aproveitou das estruturas de seu antigo castelo.
O estranhamento inicia logo quando Zobek informa que o primeiro acólito está na sede de uma companhia farmacêutica – como ele joga essa informação achando que um sujeito que ficou dormindo quase 500 anos sabe o que é uma companhia farmacêutica? Esse é apenas o primeiro de muitos furos de Lords Of Shadow 2 e, ao contrário do primeiro, prejudica demais o todo do enredo. Drácula durante o jogo transita do ambiente moderno para o interior da sua mente em que se encontra seu castelo em perfeito estado, onde aparecem personagens do além, como o fantasma de Marie e também Carmilla que havia sido morta por Gabriel no primeiro jogo. Há ainda outros eventos que buscam explorar os conflitos internos de Drácula, mas que no fim das contas deixam o jogador desorientado, você até consegue enxergar mais ou menos a intenção da trama com esses eventos, só que na prática só serviu para trazer o castelo à trama.
Os cenários de Lords Of Shadow 2 são interligados, dando uma certa sensação de MetroidVania, porém, mesmo com a beleza do castelo, não há muita variedade. Há poucos ambientes que realmente são memoráveis. Com Drácula na modernidade é aí que as coisas complicam: pessoalmente me senti jogando um outro game, tanto os cenários quanto o visual dos inimigos me desencantava, pois são bem genéricos. Passeando pela cidade e enfrentando demônios, por certos momentos me senti jogando o Spawn Armaggedon do Playstation 2 com gráficos melhorados. Apesar dos combates contra os chefes serem divertidos, essa falta de personalidade dos inimigos se expande para eles. O mais grave é que por causa de dois acólitos e o chefe final, dava para notar que o jogo estava inacabado. Por fim, a conclusão épica da saga Lords Of Shadow anunciada pelos trailers ficou em aberto, a grande revelação do jogo que envolve a aparição de Alucard é impactante no momento, mais por conta do fanservice, porque quando se reflete os acontecimentos já se enxerga outro furo. Mesmo que haja a tentativa de usar o personagem mais famoso da franquia para salvar os acontecimentos do enredo, não é o suficiente.
O que pude perceber, comparando as informações e entrevistas prévias com o produto final, é que cada mudancinha feita para Lords Of Shadow 2 foram baseadas inteiramente nas reclamações da mídia e dos jogadores, mesmo as pequenas. Na maioria das entrevistas se falava que a câmera não seria mais fixa, o jogador poderia girar a câmera em 360 graus. O intuito de se distanciar de God Of War é válido, mas supervalorizaram muito algo banal. Algumas críticas sobre o primeiro jogo reclamavam da escalada: era pouco intuitivo saber onde Gabriel poderia agarrar. E, em Lords Of Shadow 2, colocam um auxílio visual muito forçado que polui esses trechos de gameplay. Reclamavam dos loadings no primeiro jogo, mas em Lords Of Shadow 2 existem salas que você fica um tempo considerável parado enquanto o outro cenário carrega. Essa artimanha também acontece em outros jogos, só que de forma mais sutil. Parece que a MercurySteam não soube absorver as críticas, que levaram todas a risca, sem um filtro, e implementaram as mudanças apenas para cumprirem esses requisitos, inibir essas reclamações específicas, e não sobrou espaço para se atentarem a detalhes importantes na organização mais coerente do jogo.
O que há de mais sem sentido em Lords Of Shadow 2 é a inserção do stealth. Você jogador, está no controle de Drácula, senhor das trevas imortal, para no fim das contas se esconder dos inimigos? Essa situação seria mais válida se Gabriel cumprisse essas etapas do jogo naquele estágio inicial fragilizado. O inimigo que mais requer o stealth é o Golgoth Guard que é praticamente imortal, não há possibilidade de bater de frente, NÃO HÁ. O marco da infâmia furtiva de Lords Of Shadow 2 foi a transformação de Drácula em um pelotão de ratos, que mesmo sendo baseado na obra de Bram Stoker, no jogo aumentava a sensação de fragilidade.
Mesmo após Gabriel conseguir boa parte de suas habilidades, nem ao menos esses novos poderes favorecem outras abordagens sorrateiras, e pasmem, depois de um tempo, esse Golgoth Guard some dos cenários que aparecia. Eu fiquei incapaz de acreditar que o jogo realmente fez isso. O maior trunfo desse tipo de experiência, na qual o personagem começa cheio de poderes e os perde, é que durante a jornada quando o jogador consegue adquirir mais habilidades, ele se sente mais poderoso que no início. Um bom exemplo disso é o Symphony Of The Night. Lords Of Shadow 2 conseguiu destruir esse legado com todas as forças, partindo de uma mecânica que em nenhum momento se soube o real propósito de existir. O ponto que sofreu mais críticas, o símbolo do fracasso do jogo? Conde Drácula transformado em rato.
Afinal, o que deu errado?
Dois dias após o lançamento de Lords Of Shadow 2, um funcionário da MercurySteam decidiu abrir a boca para falar do ambiente de trabalho durante o desenvolvimento do jogo. Resumidamente, o funcionário culpou o diretor Enric Alvarez, que utilizou de critérios pessoais para liderar o projeto, ignorando completamente as opiniões da equipe. Seu ego havia crescido após o sucesso do primeiro Lords Of Shadow, chegando até a desconfiar dos outros membros, que só conheciam as características do jogo por conta da imprensa. Não havia reuniões, segundo o funcionário. Vários designers cansaram de terem suas ideias monitoradas e removidas por Enric, chegando a abandonar a MercurySteam. O caso mais emblemático foi do diretor artístico Jose Luís Vaello. O funcionário afirmou que Kojima mal participou do desenvolvimento. Teria dito, inclusive, que no primeiro Lords Of Shadow, ele apenas visitou a desenvolvedora, colocou seu selo e assinou uns papéis.
No terceiro dia após o lançamento do jogo, o site espanhol “Vadejuegos” confirmou as informações por meio de suas fontes, também revelando novos relatos do funcionário anônimo, dentre os quais o estranhamento da equipe ao saber das características furtivas da jogabilidade, e falando do resultado que foi a mudança na direção de arte:
“Vaello fez a arte do primeiro jogo ser incrível, e (graças à sua partida), este segundo é um Frankenstein. Há uma luta de poder. Algumas partes são bonitas, outras não são. Este Castlevania acabou sendo um pouco estranho devido a isso. Cada departamento resolve sua parte consigo mesmo e não há comunicação interna.”
Em setembro de 2016, numa entrevista para a Eurogamer, o outro lado da história foi ouvido. Enric Alvarez negou todas as alegações do funcionário que, segundo ele, havia feito por vingança, já que seria amigo do editor que postou esse artigo na imprensa espanhola. Nessa mesma entrevista Enric citou algumas escolhas que faria diferente, como mudar narrativa do jogo, que se concentrou no psicológico de Drácula. Ele afirmou que as pessoas esperavam algo semelhante ao que fizeram no primeiro, porém maior e melhorado, a sensação de jornada do personagem onde cada fase era um novo ambiente. No fim das contas Lords Of Shadow 2 partiu para algo diferente.
Saindo das especulações e partindo para uma análise de características já citadas do jogo e de algumas palavras do diretor Enric Alvarez e do produtor Dave Cox, é possível estabelecer os motivos de Lords Of Shadow 2 ser o jogo que é. Independente da versão do funcionário anônimo ou não, Kojima teve presença no primeiro jogo, e em Mirror Of Fate e no Lords Of Shadow 2 não. Dave Cox afirmou à revista Play que “Kojima juntou-se no primeiro jogo para nos ajudar a dar um perfil que não conseguiríamos de outra forma, e depois de lançado, a equipe poderia seguir por conta própria”. Quando me deparo com essa frase, só me vem a mente que a Konami se tornou dependente do Kojima em grandes lançamentos, pois Metal Gear se manteve até 2015, Castlevania teve seu auxílio no primeiro Lords Of Shadow e Silent Hill só voltou aos holofotes por conta do P.T (Playable Teaser) e – adivinha – teve a participação de Kojima. Lords Of Shadow 2 foi uma ação da Konami sem Kojima, que se soma a vários equívocos que a empresa cometeu nos últimos anos.
A maior responsabilidade caiu para a empresa menos experiente, que no caso foi a MercurySteam. Enric Alvarez na entrevista de 2016 da Eurogamer foi enfático ao dizer que o Lords Of Shadow 2 sempre foi pensado como o último para eles. Pelas palavras de Alvarez, parece que ele realmente queria tirar essa responsabilidade logo. Ele afirmou que a MercurySteam não iria continuar pois “era a história que queria contar, e que precisa mudar para novos mundos, explorar novos personagens, novas histórias e novas jogadas”.
Depois de fracasso
Após o lançamento de Lords Of Shadow 2, a MercurySteam se comporta como uma desenvolvedora independente. Em setembro de 2017, lançou o Raiders Of The Broken Planet, que mistura ação de tiroteio com elementos furtivos e uns movimentos de luta do personagem. Dá para notar alguns elementos aproveitados de Castlevania. Mas o projeto mais chamativo foi a colaboração com a Nintendo para desenvolver o Metroid Samus Returns, o novo jogo da franquia em 2D, também lançado em setembro de 2017. Com certeza a realização do Mirror Of Fate atraiu a atenção da Nintendo.
Uma das maiores queixas de Enric Alvarez foi que as reclamações se basearam muito no stealth, que representa pouquíssimo tempo do jogo. Mas uma coisa é certa, quando gostamos de alguma coisa, a gente até esquece os pequenos detalhes, mas quando não gostamos, até os minúsculos detalhes aumentam de proporção. A minha relação com esses três jogos é curiosa, pois o desapontamento com Lords Of Shadow 2 me fez enxergar melhor algumas características do primeiro, diria até apreciá-las, observando uma certa autenticidade inclusive. O sentimento que fica, sobretudo pela atual situação da Konami, é a incerteza se a franquia Castlevania terá um futuro à altura de sua glória. O que resta é aguardarmos para assistir a segunda temporada da série da Netflix e jogar o Bloodstained, um projeto de Koji Igarashi, responsável por ótimos jogos de Castlevania, em especial o Symphony Of The Night. Vamos torcer para que sejam bons.